quinta-feira, 8 de março de 2012

De Edgar Faure a Edgar Morin

Por Hamilton Werneck:

Educadores, formados ao final dos anos sessenta, conheceram o relatório Faure, resultado dos trabalhos da comissão internacional da UNESCO para o desenvolvimento da educação, criada em 1971. Soavam bem aos ouvidos os nomes dos integrantes da comissão como Felipe Herrera, do Chile, Abdul-Razzak Kaddoura, da Síria, Arthur Petrovski, da URSS e Frederick Champion Ward , dos Estados Unidos, representante da Fundação Ford. 

Surge o relatório denominado “Aprender a Ser”, considerado por Jean-Pierre Clerc como a obra que preparava o choque do futuro. (Clerc, 1972). 

Na visão de René Maheu, até então, não se produzira um inventário definindo a educação atual de acordo com uma concepção tão global tendo em vista a educação do futuro. E, esse futuro, percebe-se perfeitamente, como o final do século XX e início do século XXI, na concepção do governo francês, ao convidar Edgard Morin através de um interlocutor, Claude Allègre, no dia 15 de novembro de 1997, para organizar um grupo de especialistas capazes de rever as grandes linhas das ações humanas. (Morin,1999).

O relatório Faure inicia seus trabalhos poucos anos após a tomada da Sorbonne pelos insurgentes da primavera de Paris, dada a insatisfação, sobretudo da juventude, com os sistemas de ensino da época, seus modelos e métodos. A comissão entende, portanto, ser tarefa imediata dos países de todos os mundos, conforme a classificação do desenvolvimento (primeiro, segundo e terceiro mundo), mergulhar na análise e síntese dos principais problemas porque,

“onde quer que exista um sistema educativo tradicional, de há muito experimentado... este sistema suscita uma avalancha de críticas e sugestões que chegam até, freqüentemente a pô-lo em causa, no seu conjunto”.(Faure, 1972 a).

As grandes falhas na educação ou as “grandes sombras” que cobrem o mundo agravam as disparidades econômicas, impedem ascender a níveis de bem estar, de instrução e de democracia. As transformações exigem ações mais abrangentes e profundas, nada semelhantes a ações meramente filantrópicas. 

Outra preocupação para a comissão nas relações entre os países desenvolvidos e os menos desenvolvidos era o binômio “brain-drain”, essa espécie de drenagem de “cérebros”, pessoas mais capazes que acabam migrando para os países mais desenvolvidos, abandonando as áreas mais necessitadas pela acanhada evolução das mesmas. 

Este relatório escrito já dentro da era da comunicação, após várias obras de Herbert Marshall Mcluhan revolucionando esses meios, definindo o meio como sendo a mensagem, certamente considerou “os meios de comunicação como extensões do homem” onde Mcluhan expõe de maneira clara seu humanismo da era eletrônica. Para ele não era absurdo considerar um Shakespeare antevendo a televisão como em Romeu e Julieta:

“Mas veja! Que luz é aquela, que passa pela janela? Ela fala – e não diz nada”. (Mcluhan, 1964 a).

Ou ainda, diante da crescente consciência que se passa a ter da ação dos meios, independente de seu conteúdo, quando apresenta uma quadrinha de autor anônimo:

“No pensamento e (nos fatos) de hoje
Tudo induz e conduz ao ato e à ação,
De forma que só é digno de elogio
Falar da queda e não da contusão”.
(Mcluhan, 1964 b).

O entretenimento através dos meios de comunicação da época: cinema, rádio e TV levam a comissão que produz o relatório Faure a entender o rádio e outros meios de comunicação, muito mais como canais para entreter que, propriamente, para ensinar e educar, permitindo a existência de enormes fossos entre países e dentro dos próprios países. 

É, de certa forma, incrível constatar que este relatório fala de maneira tão atual sobre reformas do ensino, propondo a “cidade educativa”.  Aproximação da escola à vida das pessoas e à necessidade de se compreender o mundo nas suas múltiplas formas de oferecer oportunidades de conhecimento, fazem parte das considerações preliminares do próprio relatório. 

Recordo-me, com tristeza, de alguns fatos que presenciei numa cidade do interior do Brasil quando uma Secretária Estadual de Educação usando a linguagem macluhaniana de comunicação e o princípio do relatório Faure propôs que se “fizessem a praça” dentro das escolas, na esperança de que a mensagem de aprender com a cidade e o meio que tem muito a oferecer, fosse assimilado. Nada disso aconteceu. O que vi, naqueles tempos, em torno de 1975 foi a pilhéria, a transformação dos espaços escolares em terreiros de festa junina sem a devida percepção que se podia aprender com aquelas pessoas, sejam os músicos da banda, sejam os saltimbancos, sejam os engraxates. Estávamos há mais de dez anos das obras de Mcluhan e há três anos da publicação do relatório Faure e muitos colegas meus já tinham lido “O choque do futuro”de Alvin Toffler. (Werneck, 1987).

Um dos pontos relevantes desse trabalho da comissão formada pela UNESCO é a preocupação, àquela época, com a “sociedade que rejeita produtos da educação”, da sociedade que não consegue assimilar o jovem formado por uma universidade e, ao mesmo tempo, incapaz de se adaptar às rápidas transformações ou aos rápidos choques desse futuro já presente. A educação “pela primeira vez na história empenha-se, conscientemente, em preparar homens para tipos de sociedade que não existem ainda”. (Faure, 1972 b).

Se analisarmos, hoje, a reação das camadas sociais mais conservadoras, elas continuam rejeitando a “cidade educativa”, elas rejeitam o ensino e as experiências voltadas para uma visão abrangente do mundo, continuam confundindo esse tipo de visão com o holismo esotérico e procuram escolas que preparam para o passado, onde a disciplina é rígida porque não sabem fazer outra coisa senão ensinar o mandonismo despótico em detrimento da democracia participativa. E, pior que tudo isso, embora condenem Darwin e a seleção das espécies, aceitam escolas praticantes de um darwinismo social, onde a avaliação é a mais seletiva de todas. Desde o relatório Faure há sinais claros da necessidade da maior unidade ao se ensinar. Dicotomizar ao modo cartesiano já era considerado uma falha grave para os trinta anos que precediam o século XXI. Lutam, hoje, entre si, até escolas dentro de seus próprios sindicatos patronais porque, enquanto algumas propõem uma busca de formação do ser humano integral e explicitam isso nos seus objetivos e missão educativa, outras desejam continuar praticando o instrucionismo, separando informação da educação.

Portanto, como conclusão prática, preparar educandos para o exame vestibular, esquecendo-se da formação humana é propor um estelionato pedagógico. E, se formos ao relatório, encontraremos algo a nos espantar após trinta anos de sua publicação: 

“durante muito tempo o ensino teve por missão preparar para funções-tipo, para situações estáveis; para um momento da existência; para um ofício determinado ou um tipo de emprego... Esta concepção prevalece ainda com demasiada freqüência. Contudo, é obsoleto o objetivo de adquirir na juventude uma bagagem intelectual ou técnica suficiente para a duração de toda a existência. É necessário aprender para viver; aprender a aprender, de maneira a adquirir conhecimentos novos ao longo de toda a vida; aprender a pensar de maneira livre e crítica; aprender a amar o mundo e a torná-lo mais humano; aprender a desenvolver-se pelo trabalho criador”. (Faure, 1972 c).

Nós estamos lutando no Brasil deste início de século, mais de trinta anos após a publicação desse relatório pela formação continuada muito além dos estudos a serem feitos em determinada época e inserido no contexto etário da vida da pessoa. Pois bem, o relatório assim se expressa:

“O processo educativo tornado contínuo, as noções de êxito e fracasso mudarão de significado. O indivíduo que for mal sucedido em determinada idade, ou sobre um dado plano, no seu cursus, encontrará outras ocasiões. Não será afastado da vida no ghetto de seu fracasso”. (Faure,1972 d).

Quanto às relações entre professores e alunos, recomenda o relatório abolir a palavra mestre porque o professor é chamado a tornar-se, cada vez mais um conselheiro e um interlocutor. O papel principal não será o de ensinar como o que detém conhecimentos, mas o que é capaz de interagir, discutir, animar, compreender e encorajar. 

Como decorrência, o ato educativo deveria passar por uma urgente mutação: o processo de aprendizagem (learning)  tende, cada vez mais, a sobrepor-se ao processo de ensino (teaching). A escola tradicional brasileira ainda pensa que se pode ensinar alguma coisa a alguém e, portanto, insiste no (teaching) e não consegue entender que os alunos estão cada vez menos motivados porque não se dá a eles a oportunidade de praticar o (learning). 

Pelo menos, para não sermos exagerados, são trinta anos de atraso. Nós estamos falando tudo isso sem sairmos do relatório Faure. Já se pode imaginar o que será questionar a educação brasileira na ótica de Edgar Morin, se os desafios propostos pelo relatório Faure já arrepiam nossos cabelos apesar da idade de trinta e quatro anos.

Às vezes me pergunto sobre o porquê da reação dos educadores brasileiros às propostas de reforma, de mudança de postura e até de intransigência, apesar dos meios de comunicação serem muito mais difundidos em relação aos anos setenta. É verdade que o relatório Faure fala de TV a cabo e cita os Estados Unidos como o país que já estava com 1/10 de suas transmissões a cabo em 1970. Qual, pergunto-me, a origem de toda essa resistência? E devo confessar que encontrei a explicação em C.G. Jung.
“Todo Romano era cercado de escravos. O escravo e a sua psicologia inundaram a Itália antiga, e todo Romano se tornou interiormente – é claro, inconscientemente – um escravo. Vivendo constantemente na atmosfera dos escravos, ele se contaminou de sua psicologia, através do inconsciente. Ninguém consegue evitar essa influência. (Yung, 1928).

Acordei, então, desse meu sono letárgico, vez porque o “Aprender a Ser” é um dos livros de cabeceira e um dos responsáveis por mudanças radicais em minha vida profissional. Os momentos das rupturas ou essa mente disruptiva que tenho, lembrando Pedro Demo, vieram da consciência de que estava, de fato, envolvido por uma escravidão inconsciente e que precisaria libertar-me dela. Foi esse o sinal para agir e para mudar radicalmente. Não foi por acaso que usei como carro-chefe de um programa educacional quando de minha passagem por uma Secretaria de Educação por quatro anos (1997-2000), o Aprender a Aprender. Lembro-me das respostas às inúmeras perguntas: O que é isso? De onde você tirou isso? E pensar que essa idéia já completava vinte e cinco anos naquela época!

Mas, por que muita gente não reage? Por que preferem a acomodação, à não participação e à não atualização? A resposta está em Yung: é questão de escravidão. Estou convicto de que os que desejam permanecer como estão, fazendo as mesmas coisas que fazem durante os últimos vinte anos de magistério são escravos inconscientes do meio. E, como diria Mcluhan, o meio é a mensagem, certamente estarão captando do meio em que vivem os códigos da permanência e da não da transformação.

Numa das conclusões finais desse relatório fala-se de romper a questão da limitação da educação ao tempo e espaço, do incremento à educação infantil e das relações entre a família e a escola:

“... ultrapassar uma concepção de uma educação limitada no tempo (idade escolar) e fechada no espaço (estabelecimentos escolares); considerar o ensino escolar não como um fim, mas como um componente fundamental do ato educativo total, nas suas dimensões escolares e não escolares... conceber a educação como um continuum existencial, cuja duração se confunda com a duração da própria vida... desenvolver particularmente a educação das crianças em idade pré-escolar, procurando e desenvolvendo as formas mais positivas da família e da comunidade na educação da pequena infância... desenvolver por todos os meios convencionais e não convencionais a educação elementar”. Faure, 1972 e).

Embora, num segundo momento, em junho, seja tratada a visão de Edgar Morin sobre a educação, comparando-a a este relatório, ora analisado, iniciar alguns tópicos poderá antecipar a curiosidade do leitor. 

De Platão, em O Sofista, retira Morin um dos textos de introdução ao seu relatório. 

O estrangeiro: Distinto amigo esmerar-se em separar tudo de tudo é algo não somente discordante, como também é prova de desconhecimento das Musas e da filosofia. 

Teeteto: Por que? 

O estrangeiro: É a mais radical maneira de aniquilar toda argumentação, esta de separar cada coisa de todas as outras, pois a razão vem da ligação mútua entre as figuras.

Enquanto o relatório Faure, reunido no texto “Aprender a Ser” chama a atenção para a visão do todo que envolve a pessoa e a educação, Morin já dá a primeira pincelada, com base em Platão, para criticar o cartesianismo, essa separação doentia que a escola insiste em manter. Essa prática de tudo separar pode ter relação com algumas passagens da história humana, porém, algumas delas trazem náuseas ao serem lembradas: 

“Divide et impera”. Dividi e governarás. Princípio romano

“Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa” Ditado popular. Deveria estar superado há muito tempo.

“Uns são pagos para pensar, outros são pagos para fazer”. Ditado à época da colonização inglesa do século XIX. 

Existem escolas dentro das escolas? Quantas escolas fecham-se no espaço deixando as famílias do portão de entrada para fora? Quantas vezes falamos na necessidade da solidariedade e da unidade e, a nossa prática, é a separação? 

APRENDER A SER, trinta e quatro anos de vida, uma realidade para nossa educação. 

CLERC, Jean Pierre, Le Monde, 05/09/72, Paris, France.
FAURE, Edgard, Aprender a Ser, Livraria Bertrand, Lisboa, Portugal, 1972.
JUNG C.G., Contribution to Analytical Psychology, London,1928.
MCLUHAN, Herbert Marshall, Os Meios de Comunicação como extensão do Homem. Cultrix, São Paulo, Brasil, 1964.
MORIN, Edgar, A Religação dos Saberes, Bertrand do Brasil, Rio de Janeiro, 1999.
WERNECK, Hamilton, Ensinamos Demais, Aprendemos de Menos, Editora Vozes, Petrópolis, Estado do Rio de Janeiro, Brasil, 1987.

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